Tendo vivido a presença da dança e sentido sua falta tantas vezes ao longo da minha vida, tive oportunidade de ter conscientes, no meu corpo e na minha mente, seus elementos que me fazem bem. Entendo hoje claramente o que estou perdendo quando não a pratico, ou ao menos quando não me cerco dela. Sabe aquilo de só perceber o valor das coisas quando não as temos mais?
Para não dizer que minha visão sobre a importância da dança na formação tenha algum viés, por falta de conhecimento de outras atividades, vale dizer que já pratiquei muitos esportes. Nadei, joguei tênis, fiz musculação e treinei atletismo durante alguns anos, com foco em salto e velocidade. Na escola, praticava os esportes da aula de educação física. Adorava. A dança, a minha dança, no entanto, nunca se sentiu ameaçada por nada disso e sempre esteve presente, em especial o Ballet clássico. Ela estava lá, segura de si, ignorando os competidores e sempre comigo ao longo dessas vivências. E nenhum esporte teve a pretensão de substituir o Ballet. Quando, por motivo de agenda, um deles ficava e o Ballet
saia de cena, rapidamente ele ia gritando dentro de mim e logo lá estava novamente, ocupando seu lugarzinho. E também não há um viés por habilidade: sou en dedans e tenho a musculatura pouco flexível.
Com o tempo, foi ganhando clareza algo que antes eu então não saberia verbalizar. Não havia conflito entre essas atividades porque, para mim, elas não estavam na mesma categoria. O Ballet era algo diferente e único. Ele não era um esporte.
Que descoberta!
Ninguém me havia dito que, depois de 90 minutos derretendo e tentando ir um pouquinho além da minha força naquele adágio, eu não estava praticando um esporte. Que as cãibras nas solas dos pés, depois da sequência de chão de preparo para pontas, não eram consequência de um treino.
Mas não eram, de fato.
Alguns diriam que as criações coreográficas e a música tornam o Ballet uma adição de esporte e arte. Por isso seria diferente de outras atividades físicas. Seria esse o tchan do Ballet para mim? Dançar e correr ao som de Tchaikovsky seriam equivalentes?
Esse entendimento, superfrequente, também aos poucos, foi sendo desconstruído em mim, enquanto única vantagem do Ballet sobre outras coisas que eu praticava. Durante alguns anos, no fim da adolescência e início da idade adulta, não pude participar das apresentações das minhas turmas. Participava apenas das aulas e ia embora antes de todos ensaiarem ou participarem do processo coreográfico. Rotina de estudo para o vestibular, faculdade e plantões me impediram de conciliar tudo da maneira que eu queria. Nesse período, não havia figurino, música nova, experiências artísticas inovadoras... era aquecimento, barra, alongamento, centro e diagonal. Dia após dia, aquecimento, barra, alongamento, centro e diagonal... Ainda assim, o Ballet não ocupava o posto de esporte.
Hoje, quando reflito sobre o envolvimento do aluno na aula de Ballet, enxergo uma série de pequenos acontecimentos que, antes, passavam em branco para mim. Rotinas tão automáticas, que não me permitiam ver sua importância. Eram elas, desde sempre, que o colocavam no alto do pódio.
Na sala de aula, começamos tudo com o aquecimento. É o preparo para o que vem pela frente... lubrificação das articulações, músculos suavizados pelo calor. Com o terreno minimamente preparado, começamos a sequência da barra. Tenho e tive a graça de ter professores espetaculares ao longo dos anos, que preparam a base para os exercícios de centro (afinal, esse é o propósito – dançar no centro!), através dos exercícios iniciais. Achar o eixo, na barra, para centro com muitas piruetas, ativar o core para os adágios, e assim por diante – o planejamento de curto prazo.
Com a mesma lógica, a partir de objetivos para as próximas semanas e meses, repetimos e progredimos em algumas sequências, desafios são trazidos (“agora, tudo com a esquerda!”), sequências de centro e diagonais que nos habilitam para nossas propostas de atingimentos – foco em giros? Em saltos? Em velocidade e baterias? E o planejamento de médio prazo toma corpo. A ideia de que o esforço contínuo é o que traz resultados torna-se natural. E real. A cada aula, sentíamos, na prática, a diferença de um preparo adequado sobre a qualidade da execução das sequências propostas. Para nós, tudo fazia sentido, através da vivência pessoal do resultado. Até mesmo para crianças e adolescentes. Nada cai no colo e, sem manutenção, se perde. Tudo isso firmemente empacotado em um plano de desenvolvimento e educação ao longo dos anos (“em alguns anos, terei força e habilidade para dançar nas pontas!”).
Durante cada execução, quantas correções! Um aluno errou? Para-se a música e todos começam novamente. E 5,6,7 e 8, de novo! E de novo! “Eleve o quadril da base”; “estique o joelho da perna de baixo!”. Momentos de frustração vêm, sim, com correções. Mas, ao aplicá-las, como rapidamente se pode perceber a melhora do resultado e também que, muitas vezes, para atingir o objetivo, tudo pode ser mais fácil! Limites são expandidos. Assim, o amor e respeito ao mestre crescem, pois fica evidente que sua atenção ao identificar meus pontos de melhora leva à minha evolução.
No centro, as execuções em duplas, trios ou em grupos nos exigem prestar atenção aos colegas, mesmo que de canto de olho. Elevar os braços simultaneamente, garantir nossa distribuição no espaço, nosso alinhamento, permitir que todos estejam visíveis ao professor e no espelho...
Fazer dupla para pequenos saltos com uma garota forte de pernas curtas e velozes... tentar manter o passo! Grand battements junto com sua amiga bailarina profissional e ginasta... segura o abdômen e sobe essa perna... enfim, olhar os pares com admiração, como exemplos a serem seguidos, aprendendo com eles e elevando nossos padrões, sem diminuir seu valor.
Há tantas outras coisas que trago comigo!
Hoje, concluo que a experiência do Ballet poderia ser traduzida como um grande laboratório para a vida. Fui preparada para lidar com dificuldades na família, me capacitei para minha performance como profissional e para qualquer conversa de feedback e desenvolvimento (tanto para receber quanto fazer críticas ou elogios).
E, sim, o Ballet foi tão eficaz quanto qualquer exercício físico de alta intensidade para meu corpo e encheu meu coração de alegria ao trazer Vivaldi a meus ouvidos três vezes por semana... há muita arte aqui. Claramente, o processo criativo, quando vivido completamente, utilizando-se da incrível massa de modelar que é o corpo humano, torna tudo isso mais belo e completo.
Enfim, em tempos tão difíceis, creio que todos poderiam se beneficiar de ter “a sua dança”, algo que te complete e com que seja possível se identificar, tanto quanto eu me identifiquei com o Ballet clássico.
Daqui a alguns dias, trarei um artigo sobre as habilidades e comportamentos exigidos pelo mercado de trabalho, que a dança pode claramente ajudar a desenvolver, especialmente para quem é parte de um time.
Um grande abraço e até lá!
Bom demais ler e reler.